Ponderações sobre a gratuidade judiciária

Ponderações sobre a gratuidade judiciária

As modificações introduzidas pelo CPC/2015 sobre os fundamentos para a concessão da gratuidade de justiça têm sido objeto de incessante debate, em especial perante o Poder Judiciário. Especificamente, uma das questões bastante discutidas e ainda não sedimentadas nos tribunais diz respeito a se a pessoa natural faz jus ao benefício da justiça gratuita a partir da apresentação da mera declaração de hipossuficiência ou se deve, antes, comprovar a insuficiência de recursos para suportar os encargos processuais.

Fruto da nossa experiência, na advocacia, em casos nos quais tivemos a oportunidade de debater a respeito do assunto, vão a seguir, nestas breves anotações, algumas considerações a respeito do tema. Sem pretender esgotá-lo, o texto tem por escopo examinar apenas um dos fundamentos mais recorrentemente utilizados para condicionar o deferimento do benefício, no caso das pessoas naturais, à comprovação da hipossuficiência financeira: a Constituição, em seu art. 5º, LXXIV, exige que o potencial beneficiário da gratuidade de justiça comprove a insuficiência de recursos.

I. O que diz a Constituição

Antes de passar ao exame do argumento, vale a pena transcrever a literalidade do dispositivo, tão frequentemente citado nessas discussões, in verbis: “Art. 5º [omissis] LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (negritou-se).

Vê-se, portanto, que o dispositivo constitucional não fala simplesmente em “gratuidade de justiça”, “justiça gratuita” ou “gratuidade judiciária”. A comprovação da insuficiência de recursos, nos termos do texto constitucional, faz-se necessária para fins de “assistência jurídica integral e gratuita”. Seriam institutos diversos?

II. Conceito de assistência jurídica integral e gratuita

Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, ao comentarem o art. 5º, LXXIV, da Constituição, apontam que a assistência jurídica integral e gratuita compreendem: (i) o direito à informação jurídica; (ii) o direito à orientação jurídica; (iii) o direito ao benefício da gratuidade de justiça; e (iv) o direito ao patrocínio de causas judiciais, ad litteram:

O direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita é direito fundamental a uma prestação estatal. Compreende direito à informação jurídica e direito à tutela jurisdicional adequada e efetiva mediante processo justo. O direito à assistência jurídica integral outorga a todos os necessitados direito à orientação jurídica e ao benefício da gratuidade de justiça, que compreende isenções de taxas judiciárias, dos emolumentos e custas, das despesas com publicações indispensáveis no jornal encarregado da divulgação de atos oficiais […] (art. 3º, Lei n.º 1.060, de 1950). Ainda, implica obviamente direito ao patrocínio judiciário, elemento inerente ao nosso processo justo. Nossa Constituição confia à Defensoria Pública a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”(art. 134, CRFB)[1].

Dito de outra forma, a assistência jurídica integral e gratuita a que se refere o art. 5º, LXXIV, da Constituição compreende, de forma cumulada: (i) o direito a ser informado, orientado e patrocinado juridicamente pela Defensoria Pública, nos termos do art. 134 da Constituição[2]; e (ii) o direito à justiça gratuita.

É o que se pode depreender, também, em parte, da leitura do art. 5º, § 1º, da Lei n.º 1.060/50 — “[e]stabelece normas para a concessão da assistência jurídica” —, in verbis:

Art. 5º. O juiz, se não tiver fundadas razões para indeferir o pedido, deverá julgá-lo de plano, motivando ou não o deferimento dentro do prazo de setenta e duas horas.

§ 1º. Deferido o pedido, o juiz determinará que o serviço de assistência judiciária, organizado e mantido pelo Estado, onde houver, indique, no prazo de dois dias úteis o advogado que patrocinará a causa do necessitado [negritou-se].

Depreende-se, então, que, nos termos do art. 5º, LXXIV, da Constituição, a comprovação da insuficiência de recursos far-se-á, exclusivamente, para fins de assistência judiciária integral e gratuita — que, embora compreenda em seu bojo, também, a gratuidade de justiça[3], não se confunde com esse último instituto.

III. Distinções entre assistência jurídica integral e gratuita e gratuidade de justiça

A gratuidade de justiça, nos termos do art. 98, § 1º, do CPC, diversamente a assistência jurídica integral e gratuita, não compreende os direitos à informação jurídica, à orientação jurídica ou ao patrocínio gratuito de demandas judiciais. Diversamente, seu escopo limita-se, fundamentalmente, aos encargos financeiros relacionados aos seguintes aspectos do processo:

§ 1º A gratuidade da justiça compreende: I – as taxas ou as custas judiciais; II – os selos postais; III – as despesas com publicação na imprensa oficial, dispensando-se a publicação em outros meios; IV – a indenização devida à testemunha que, quando empregada, receberá do empregador salário integral, como se em serviço estivesse; V – as despesas com a realização de exame de código genético – DNA e de outros exames considerados essenciais; VI – os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira; VII – o custo com a elaboração de memória de cálculo, quando exigida para instauração da execução; VIII – os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório; IX – os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido [destaques acrescidos às principais despesas, a nosso ver].

Vê-se, assim que a gratuidade de justiça tem um escopo mais restrito do que a assistência jurídica integral e gratuita — que, além de englobar a própria gratuidade de justiça, compreende também os direitos à informação jurídica, à orientação jurídica e ao patrocínio de demandas judiciais, de forma gratuita.

Tanto são distintos os dois institutos que o Superior Tribunal de Justiça, em diversos julgados[4], tem reconhecido que o deferimento da assistência jurídica integral e gratuita não implica a concessão da gratuidade de justiça. Muito embora não concordemos com a conclusão adotada, essa linha jurisprudencial demonstra que assistência jurídica e gratuidade judiciária consistem em institutos diversos, que devem ser comprovados de forma individualizada.

Dessa forma, parece, efetivamente, que não se tratam de institutos idênticos. Mais ainda: parece haver distinções entre ambos os institutos que justificam, em um caso — assistência jurídica integral e gratuita —, que a Constituição exija do beneficiário a comprovação da insuficiência de recursos e, em outro — gratuidade de justiça — que o Código de Processo Civil se satisfaça com a mera apresentação da declaração de hipossuficiência (art. 99, § 3º), cuja presunção de veracidade restará infirmada somente se houver nos autos elementos que apontem o oposto ao conteúdo declarado pelo peticionante (art. 99, § 2º).

Com efeito, como dito, a assistência jurídica integral e gratuita compreende, para além da gratuidade de justiça — com tudo aquilo que se encontra previsto no art. 98, § 1º, do CPC —, os direitos à informação jurídica, à orientação jurídica e ao patrocínio de demandas judiciais, de forma absolutamente gratuita. Por se tratar de um direito prestacional, que implicará custos para o Estado — significativamente maiores do que aqueles que são afastados do jurisdicionado que goza da mera gratuidade de justiça —, tudo indica que aqui, com mais razão, justifica-se a necessidade de se exigir a comprovação de insuficiência de recursos.

Tal necessidade, contudo, não se verifica nos casos em que se postula, tão somente, a gratuidade judiciária, salvo nos casos em que se façam presentes nos autos elementos que indiquem que o postulante ao benefício dispõe de suficientes recursos para suportar os encargos financeiros do processo (art. 99, § 2º, do CPC). A uma, porque o art. 98, § 3º, do CPC institui a presunção de veracidade à “alegação” de hipossuficiência; a duas, porque o art. 5º, LXXIV, da Constituição, ao exigir a comprovação de insuficiência de recursos, não versa sobre “gratuidade de justiça”, e sim sobre “assistência jurídica integral e gratuita”.

Dessa forma, à luz do exposto, conclui-se que não é dado ao magistrado, a priori, exigir a comprovação, por parte da pessoa natural, de insuficiência de recursos para fins de concessão da gratuidade de justiça com esteio no art. 5º, LXXIV, da Constituição, haja vista que o aludido dispositivo exige que se perfaça a aludida comprovação apenas nos casos em que se postula a assistência jurídica integral e gratuita, e não quando se pede a mera gratuidade de justiça (Fonte: CONJUR).

Arthur Calaça


[1] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Comentário ao art. 5º, LXXIV. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 492 – negritos acrescidos.

[2] “Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal” (negritou-se).

[3] Em sentido diverso: AgRg no AREsp 772.756/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 01/09/2016, DJe 12/09/2016.

[4] A título exemplificativo, foi precisamente o que se decidiu no já citado AgRg no AREsp 772.756/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 01/09/2016, DJe 12/09/2016.

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