A inconstitucionalidade da multa tributária punitiva (não qualificada) em montante superior a 100% (cem por cento) do tributo devido

A inconstitucionalidade da multa tributária punitiva (não qualificada) em montante superior a 100% (cem por cento) do tributo devido

Recentemente, por acórdão publicado aos 23 de fevereiro de 2022, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral no que diz respeito à questão constitucional referente à “possibilidade de fixação de multa tributária punitiva, não qualificada, em montante superior a 100% (cem por cento) do tributo devido” (Tema 1.185).

A análise dessa questão não se deve perfazer sem um prévio exame do fundamento constitucional e das funções da multa punitiva, a fim de que, subsequentemente, seja possível formular um juízo acerca da proporcionalidade ou do eventual caráter confiscatório de uma multa tributária punitiva fixada nos moldes acima indicados.

Dentre as principais funções da multa punitiva, destaca-se a função satisfativa, i. e., punitiva ou sancionatória, pela qual se visa a punir o infrator pelo descumprimento da regra jurídico-tributária, a fim de se restabelecer a ordem perturbada pelo descumprimento da regra jurídico-tributária. A esse respeito, na doutrina, Paulo de Barros Carvalho destaca que “toda multa exerce função de apenar o sujeito a ela submetido, tendo em vista o ilícito praticado”[1], de onde se extrai que toda sanção tributária é dotada de um viés punitivo.

Para além da função sancionatória (punitiva), merece destaque também a função preventiva, pela qual se visa a impedir que o mesmo infrator ou que outros contribuintes venham a incorrer em descumprimento  da norma jurídico-tributária. Quanto ao ponto, Alfredo Augusto Becker define sanção, ou multa, quanto à sua finalidade, como “o dever preestabelecido por  uma regra jurídica que o Estado utiliza como instrumento jurídico para impedir ou desestimular, diretamente, um ato ou fato que a ordem jurídica proíbe[2]; na jurisprudência, o Ministro Luís Roberto Barroso, no voto condutor do acórdão proferido nos autos do Segundo AgRg no RE n.º 602.686, acentua o fato de que “[a]s multas punitivas […] visam a coibir o descumprimento às previsões da legislação tributária[3].

As funções da multa punitiva, contudo, não se esgotam apenas nessas duas vertentes: com efeito, essa sanção é dotada também de uma função reparatória, pela qual, nas palavras de Ricardo Mariz de Oliveira, citado por Caio Augusto Takano, “se busca o ressarcimento pelos danos causados pela infração cometida[4].

Adicionalmente, cumpre observar que, em que pese se falar em uma tríplice função da multa punitiva — preventiva, sancionatória e reparatória —, as três funções não se revestem da mesma importância: antes, as funções sancionatória e preventiva, de certa forma, preordenam-se à função reparatória e a ela servem.

Isso se dá porque o bem jurídico tutelado pela multa punitiva, em última análise, não é outro a não ser a arrecadação tributária obtida pelo regular cumprimento da norma jurídico-tributária. Com efeito, é o que aponta com precisão Hugo de Brito Machado Segundo ao afirmar que o fundamento constitucional para a instituição de multa tributária punitiva reside nos arts. 145, § 1º, e 150, II, da Constituição, segundo os quais “[t]odos devem contribuir para o financiamento do Estado na medida de suas possibilidades econômicas”[5].

Dessa maneira, tendo em vista que as funções sancionatória e didática (preventiva) têm por finalidade, respectivamente, tutelar a ordem jurídica (i) mediante a imposição de uma represália pelo descumprimento da legislação tributária e (ii) pela criação de mecanismos de desencorajamento de potenciais violações à legislação tributária, fica evidente que esses dois aspectos funcionais da multa punitiva assumem um caráter instrumental e acessório em face da função reparadora, que tem como objetivo restaurar imediatamente a ordem jurídica perturbada pelo descumprimento da legislação tributária e reparar os danos causados pela infração cometida.

Demonstrada a centralidade da função reparadora da multa punitiva, torna-se possível, agora, o exame da constitucionalidade da proposta de fixação de multa tributária punitiva, não qualificada, em montante superior a 100% (cem por cento) do tributo devido sob a ótica da máxima da proporcionalidade.

Segundo o Ministro Gilmar Ferreira Mendes e o Sub-Procurador Geral da República Paulo Gustavo Gonet Branco, os atos do Estado serão considerados constitucionais se superarem o teste da máxima da proporcionalidade. Para tanto, o ato impugnado deve ser considerado, a uma, adequado —  assim classificado “se, com a sua utilização, o evento pretendido pode ser alcançado” — e, a duas, necessário —“se o legislador não dispõe de outro meio eficaz, menos restritivo aos direitos fundamentais[, para alcançar o evento pretendido]”[6].

À luz dessas premissas e examinando a questão de maneira superficial, seria possível afirmar, num primeiro momento, que a fixação da multa punitiva em patamar superior ao valor integral da obrigação tributária é meio adequado a promover o escorreito cumprimento da legislação tributária, dado que seria, em tese, correta a afirmação de que, quanto maior for o valor fixado, maior será o efeito coercitivo e, por conseguinte, o potencial reparador dessa mesma multa.

Ocorre que, ao contrário do que se poderia supor prima oculi, a fixação de multa em patamares cada vez mais escorchantes não conduz, necessariamente, ao aumento da sua coercitividade. Essa afirmação encontra respaldo em estudos realizados com o uso de ferramentas da análise econômica do Direito – AED, a partir dos quais é possível concluir que existe um ponto ótimo de coercitividade da multa punitiva, o qual, uma vez ultrapassado, faz com que o aumento do valor da multa implique uma diminuição no seu potencial coercitivo.

A esse respeito, vale aqui a menção aos resultados obtidos em excelente pesquisa científica levada a cabo na Escola de Direito de Brasília – EDB, mantida pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, Ensino e Pesquisa – IDP —, no bojo da qual foi examinada a possibilidade de fixação de critérios para a limitação do valor das multas processuais denominadas astreintes, também sob a perspectiva da AED.

Nesse estudo[7], realizado pelo nobre jurista Thagore Borges Muniz, sob a orientação do eminente Professor Dr. Guilherme Pupe da Nóbrega, chegou-se à conclusão de que, a partir de determinado ponto, a elevação do valor da referida multa processual não se mostra eficaz no tocante ao cumprimento da obrigação principal.

Essa constatação se explica pelo fato de que, em certo ponto, o devedor passa a considerar, psicologicamente (aqui entra o individualismo metodológico), que a probabilidade de a obrigação principal vir a ser coercitivamente satisfeita diminui, de tal modo que o cumprimento da obrigação principal passa a ser tido como custo de oportunidade de uma escolha alternativa de alocação de recursos (cumprimento de obrigações trabalhistas, satisfação de obrigações tributárias junto a outros entes da Federação etc.).

De forma esquemática, assim, a curva da coercitividade relacionada ao valor da multa, no estudo em comento, é descrita nos seguintes termos:

A inconstitucionalidade da multa tributária punitiva (não qualificada) em montante superior a 100% (cem por cento) do tributo devido

Trazendo, pois, por analogia, esses elementos para o exame do tema aqui analisado, verifica-se a falsidade da premissa inicial segundo a qual a fixação de multa em valor superior à integralidade do objeto da prestação tributária aumentaria a coercitividade do instrumento e, por conseguinte, elevaria o seu potencial reparatório.

Daí se pode verificar que o meio proposto — fixação de multa em patamar superior a 100% (cem por cento) do valor da obrigação tributária — é, muito provavelmente, se não certamente, inadequado ao cumprimento das funções da multa, em geral, e da sua função reparatória, de modo particular, de onde se conclui que, por inadequada, a multa fixada nos moldes defendido pela Recorrente é manifestamente desproporcional — e, portanto, inconstitucional. Mas não é só.

Ainda que se entenda que a fixação de multa em patamar superior a 100% (cem por cento) do valor da obrigação tributária é um meio adequado aos fins a que visa a multa punitiva, ainda assim a fixação de multa tributária não qualificada em montante superior a 100% (cem por cento) do tributo devido se afiguraria inconstitucional, pois não lograria êxito em superar o teste da necessidade.

Isso se dá porque, se a função primordial da multa —função reparatória —, à qual todas as demais se preordenam, visa a assegurar que o montante da obrigação principal seja devidamente arrecadado e recolhido aos cofres públicos para fins de financiamento do Estado, certamente uma multa que excede esse valor desborda da medida necessária à consecução do fim ao qual se propõe.

A esse respeito, Caio Augusto Takano pontua com acerto que “os limites materiais das sanções tributárias são aqueles estabelecidos em razão do bem jurídico tutelado pela norma sancionatória”, razão pela qual “as multas pecuniárias por descumprimento da obrigação principal não devem ultrapassar o próprio valor do tributo devido, que constitui […] o próprio bem jurídico (arrecadação) que foi lesionado[8]. Fica evidente, pois, a desproporcionalidade da medida proposta, haja vista que, nesses termos, o objetivo pretendido ultrapassa os limites da própria finalidade reparadora da multa punitiva.

E daí se verifica, por conseguinte, o caráter confiscatório da multa punitiva que ultrapassa a integralidade do valor do débito tributário.

De fato, em que pese a dificuldade em se estabelecer uma definição do conceito de efeito confiscatório, Luís Eduardo Schoueri aponta que, em determinadas situações, é possível verificar a ocorrência de confisco, como quando o tributo […] ultrapassou o necessário para atingir a sua finalidade”[9]. Ora, se a multa ultrapassa o valor integral do crédito tributário, certamente excedeu sua finalidade e, portanto, afigura-se confiscatória.

Não por outra razão a jurisprudência do STF tem considerado que as multas tributárias punitivas, não qualificadas, que ultrapassem 100% (cem por cento) do tributo devido implicam confisco e incorrem em vedação à regra constitucional contida no art. 150, IV, da CF, in verbis:

EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário. CDA. Nulidade. Alegada violação do art. 5º, LV, da CF/88. Matéria infraconstitucional. Afronta reflexa. Multa. Caráter confiscatório. Necessidade de reexame de fatos e provas. Taxa SELIC. Constitucionalidade. […] 2. Ambas as Turmas da Corte têm-se pronunciado no sentido de que a incidência de multas punitivas (de ofício) que não extrapolem 100% do valor do débito não importa em afronta ao art. 150, IV, da Constituição. […][10].

Assim, seja por ofensa ao princípio da proporcionalidade, seja por infração à regra da vedação ao uso de tributo com efeito confiscatório, não merece acolhida, por ser inconstitucional, a tese que defende a possibilidade de fixação de multa tributária punitiva, não qualificada, em montante superior a 100% (cem por cento) do tributo devido. Vale aguardar para ver se a atual jurisprudência do STF se confirmará ou não nesse caso.

Arthur Calaça


[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 518.

[2] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 556 – destaques acrescidos.

[3] AgRg no AgRg no RE n.º 602.686/PE, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 09/12/2014, publicado em 05/02/2015 – negritou-se.

[4] TAKANO, Caio Augusto. A dosimetria das multas tributárias: proporcionalização e controle. In Revista de Direito Tributário Atual n.º 37 – 1º semestre/2017. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT, 2017, p. 34 – destacou-se.

[5] MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Multas tributárias, proporcionalidade e confisco. In: Revista de Direito Tributário Atual – RDTA n.º 27/2012. São Paulo: Dialética – Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT, 2012, p. 376 – negritos acrescidos.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 226.

[7] MUNIZ, Thagore Borges. Análise econômica do preceito cominatório (artigo não publicado).

[8] TAKANO, op. cit., p. 44 – negritos acrescidos.

[9] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 363 – negritou-se.

[10] RE 871174 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 22/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-224  DIVULG 10-11-2015  PUBLIC 11-11-2015 – destacou-se. No mesmo sentido: ARE 1315580 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 22/08/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-186 DIVULG 16-09-2021 PUBLIC 17-09-2021; ARE 1341246 AgR, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 18/12/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-014  DIVULG 26-01-2022  PUBLIC 27-01-2022; ARE 1315562 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 30/08/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-187  DIVULG 17-09-2021  PUBLIC 20-09-2021; dentre outros.

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