Em meio às diversas medidas de enfrentamento da crise econômica ocasionada pela pandemia de Covid-19, adotadas pelo Estado brasileiro, sobreveio, mais recentemente, a Lei n.º 13.988/2020, que autoriza e fixa parâmetros para a realização de transação relativamente a débitos com a Fazenda Pública. A Lei, resultado da conversão da Medida Provisória n.º 899/2019, foi publicada aos 14 de abril transato e tem por objetivo pôr termo a litígios relacionados à cobrança de créditos, de natureza tributária ou não.
Além de dispor, de forma genérica, sobre a possibilidade de transação, por adesão ou por iniciativa individual, relativa a créditos da União, de suas Autarquias e de suas Fundações Públicas, a Lei previu, de forma específica, diretrizes para a celebração de transação por adesão: (i) no âmbito do contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica[1] ; e (ii) na seara do contencioso tributário de pequeno valor[2] .
A disciplina, a nível regulamentar, do procedimento e de alguns dos requisitos para a celebração de transação foi atribuída ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional, nos termos do art. 14 da Lei n.º 13.988/2020. Essa regulamentação, porém, não poderá contrariar os parâmetros normativos já estabelecidos pela referida Lei.
Quanto a esses parâmetros, passamos a destacar, neste texto — um pouco mais extenso do que aqueles que publicamos rotineiramente — um punhado de aspectos de alguns deles, que, a nosso ver, merecem maior destaque nesse exame preliminar do recém-chegado diploma normativo.
Iniciativa da proposta e objeto da transação
Logo de início, a Lei trata das modalidades de transação e daqueles sujeitos que poderão tomar a iniciativa de propô-la. A proposta de transação poderá se perfazer por duas modalidades, previstas no art. 2º da Lei n.º 13.988/2020: (i) de forma individualizada, por iniciativa da União ou do próprio contribuinte, quanto aos créditos inscritos em dívida ativa da União; ou (ii) por adesão do contribuinte a edital publicado pela União, nos demais casos de contencioso tributário, judicial ou administrativo, e, especificamente, no contencioso tributário de pequeno valor e no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica.
Quanto ao seu objeto, o art. 1º, § 4º, da Lei n.º 13.988/2020 preceitua que poderão sujeitar-se à transação apenas: (i) “créditos tributários não judicializados sob a administração da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia”; (ii) “dívida ativa e […] tributos da União, cujas inscrição, cobrança e representação incumbam à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional”; e (iii) “no que couber, [a] dívida ativa das autarquias e das fundações públicas federais, cujas inscrição, cobrança e representação incumbam à Procuradoria-Geral Federal”, assim como os “créditos cuja cobrança seja competência da Procuradoria-Geral da União”.
Benefícios
No que diz respeito, por sua vez, aos benefícios que poderão ser contemplados pela transação, dispõe a Lei, em seu art. 11:
Art. 11. A transação poderá contemplar os seguintes benefícios: I – a concessão de descontos nas multas, nos juros de mora e nos encargos legais relativos a créditos a serem transacionados que sejam classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, conforme critérios estabelecidos pela autoridade fazendária, nos termos do inciso V do caput do art. 14 desta Lei; II – o oferecimento de prazos e formas de pagamento especiais, incluídos o diferimento e a moratória; e III – o oferecimento, a substituição ou a alienação de garantias e de constrições.
De forma sintetizada, pois, eis os benefícios que poderão ser compreendidos na transação: (i) substituição ou alienação de bens dados em garantia ou constritos; (ii) concessão de prazos ou de outras formas especiais de facilitação do pagamento; e (iii) descontos em multas, juros de mora e encargos legais referentes a créditos considerados irrecuperáveis ou de difícil recuperação, assim definidos por ato do Procurador-Geral da Fazenda Nacional. Quanto a esse último aspecto, consideram-se irrecuperáveis ou de difícil recuperação os créditos devidos por empresas em processo de recuperação judicial, liquidação judicial, liquidação extrajudicial ou falência, por força do art. 11, § 5º, da Lei n.º 13.988/2020.
Tem-se, pois, que, por via de regra, a redução do montante principal — não prevista no dispositivo supratranscrito — não será objeto de proposta de transação nos termos da Lei n.º 13.988/2020. A esse respeito, aliás, o seu art. 11, § 2º, inciso I é expresso no sentido de que fica vedada a celebração de transação que implique “redução do montante principal do crédito”.
Exceção a essa regra é prevista no art. 25, II, da Lei, por força do qual, no âmbito da transação por adesão no contencioso tributário de pequeno valor, poderá haver “concessão de descontos, observado o limite máximo de 50% (cinquenta por cento) do valor total do crédito”. É dizer: nessa hipótese, o desconto concedido poderá ultrapassar o montante devido a título de multa, juros legais e encargos moratórios e implicar diminuição do montante principal — desde que, como visto, o desconto não seja superior à metade do valor integral do crédito.
Vale acrescentar, por fim, que a concessão de um desses benefícios não implica a exclusão da possibilidade da concessão de outro benefício distinto. É exatamente o que estatui o art. 11, § 1º, da Lei n.º 13.988/2020, in verbis: “[é] permitida a utilização de mais de uma das alternativas previstas nos incisos I, II e III do caput deste artigo para o equacionamento dos créditos inscritos em dívida ativa da União”.
Vedações
Além da vedação geral à concessão de descontos quanto ao montante principal — excepcionada, como visto acima, pelo art. 25, II, da Lei n.º 13.988/2020 —, o art. 5º da Lei estatui outras vedações ao manejo da transação.
Quanto ao ponto, estabelece o referido dispositivo que não serão objeto de transação: (i) a redução de multas de natureza penal; e, destacadamente, (ii) a concessão de descontos ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, enquanto não autorizada pelo seu Conselho Curador, e aos créditos devidos por optantes do Simples Nacional, até que sobrevenha lei complementar que autorize a referida desoneração.
Especificamente quanto a esse último aspecto — vedação à concessão de descontos referentes ao Simples Nacional —, verifica-se que o legislador optou por deixar à lei complementar o tratamento dessa hipótese de transação. A nosso ver, porém, a opção do legislador por esse comportamento não seria mandatória, pois, nesse caso, o art. 146, III, d, da Constituição exige a instrumentalização de lei complementar apenas para fins de instituição do regime que confira tratamento diferenciado e favorável às microempresas e às empresas de pequeno porte — regime esse trazido em 2006, pela Lei Complementar n.º 123 —, e não para a instituição de transação que tenha por beneficiários os optantes pelo Simples, nome pelo dado ao multicitado regime.
Dessa forma, não seria necessária, sob a nossa perspectiva, que a transação que tenha por objeto descontos sobre o crédito, no caso dos optantes pelo Simples Nacional, fosse disciplinada por lei complementar. Até mesmo porque, nesse caso, nem sequer haveria que se falar em tratamento diferenciado: a transação instituída pela Lei n.º 13.988/2020 é oferecida, indistintamente, a todas pessoas jurídicas, independentemente do regime de tributação pelo qual tenham optado — e, inclusive, às pessoas naturais, ou pessoas físicas.
Feita essa breve observação, pois, passamos ao exame das demais vedações. A esse respeito, vejamos o que estatui o art. 11, § 2º, da Lei n.º 13.988/2020:
§ 2º É vedada a transação que: I – reduza o montante principal do crédito, assim compreendido seu valor originário, excluídos os acréscimos de que trata o inciso I do caput deste artigo; II – implique redução superior a 50% (cinquenta por cento) do valor total dos créditos a serem transacionados; III – conceda prazo de quitação dos créditos superior a 84 (oitenta e quatro) meses; IV – envolva créditos não inscritos em dívida ativa da União, exceto aqueles sob responsabilidade da Procuradoria-Geral da União.
Tem-se, pois, que, além da vedação contida no inciso I, quanto à impossibilidade de redução do montante principal — já examinada nas linhas antecedentes —, em acréscimo, os descontos concedidos nas transações não poderão acarretar redução do montante integral do crédito em parcela superior a 50% (cinquenta por cento). Em se tratando, porém, de pessoas naturais ou de microempresas ou empresas de pequeno porte, essa redução poderá chegar a até 70% (setenta por cento) do montante total — desde que não se tratem de empresas optantes pelo Simples Nacional, ex vi do art. 5º, II, a, da Lei n.º 13.988/2020, conforme destacado acima.
Acrescente-se, ainda, que a transação também não poderá conceder prazo superior a 84 (oitenta e quatro) meses para a quitação dos créditos transacionados. Aqui também, todavia, há exceção para o caso de pessoas naturais e de microempresas ou empresas de pequeno porte: a essas pessoas, por força do § 3º do art. 11 da Lei poderá ser concedido prazo de até 145 (cento e quarenta e cinco) meses para quitarem o crédito — ressalvada a parte relativa às contribuições previdenciárias, que poderão ser quitadas somente em até 60 (sessenta) meses, por força do art. 195, § 11, da Constituição.
Essa mesma exceção, por fim, aplica-se também às instituições de ensino — independentemente do nível de ensino, haja vista a inexistência de restrição legal —, às Santas Casas de Misericórdia, às sociedades cooperativas e às demais organizações da sociedade civil de que trata a Lei n.º 13.019/2014.
Considerações finais
Enfim, vem em tempo oportuno a aprovação da transação tributária no âmbito federal, dada a necessidade de conciliação, de um lado, entre os princípios da preservação da empresa — e do emprego — e, de outro, da necessidade crescente de custeio, pelo Estado, das despesas decorrentes do embate à pandemia.
Muito embora, portanto, existam, em nossa opinião, aprimoramentos a serem feitos — tais como o oferecimento às empresas optantes pelo Simples Nacional de transação que tenha por objeto o desconto sobre o crédito inscrito em dívida ativa, ora vedada pelo art. 5º, II, a, da Lei n.º 13.988/2020 —, torcemos para que os objetivos políticos, econômicos e sociais visados pela medida sejam alcançados e para que essa iniciativa promova e estimule, para além da superação da crise, formas outras de resolução autocompositiva de litígios que envolvam a Fazenda Pública.
[1] Assim são compreendidas as controvérsias que tratem de questões que ultrapassem os interesses subjetivos da causa, definidas como tais com base em manifestação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional – PGFN e da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil – SRF (art. 16, caput e § 3º, da Lei n.º 13.988/2020).
[2] Entendias como as disputas, judiciais ou administrativas, relativas a cobrança que não ultrapasse o patamar de 60 (sessenta) salários-mínimos, em que figurem como partes devedoras pessoas naturais, microempresários ou empresas de pequeno porte (arts. 23 e 24, parágrafo único, da Lei n.º 13.988/2020).