O presente texto pretende iniciar a compreender os critérios utilizados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF para se proceder à definição de conceitos contidos no critério material da hipótese de incidência das normas matrizes de incidência tributária, a partir de um estudo acerca de precedentes recentes que trataram do conceito de “prestar serviço de qualquer natureza”, critério material da hipótese de incidência do imposto sobre serviços – ISS.
Essa questão exsurge da premissa teórica de que os conceitos utilizados na legislação tributária ora se subordinam aos conceitos preexistentes no Direito Privado, ora são autônomos em relação a esses mesmos conceitos — podendo, em uma perspectiva intermediária, admitir-se que os conceitos de Direito Privado devem ser aceitos apenas prima facie, não sendo imunes a modificações levadas a efeito posteriormente pela legislação tributária, consoante lecionam, e. g., Paulo Ayres Barreto e Fernando Daniel Fonseca[1].
Nessa linha, a indagação que se põem são: (i) quais os elementos que, na jurisprudência do STF, influem na definição dos conceitos utilizados na legislação tributária? E (ii) a Corte se alinha a algum dos posicionamentos acima mencionados no que diz respeito às possíveis concepções quanto à autonomia conceitual do Direito Tributário?
Essas questões se mostram relevantes na medida em que autonomia conceitual do Direito Tributário tem, tradicionalmente, sido tema de recorrentes debates em função do teor do art. 110 do CTN[2], que aponta para uma possível subordinação do Direito Tributário aos conceitos do Direito Privado. Uma mudança de perspectiva a esse respeito pode mitigar, nos dizeres de Humberto Ávila[3], os graus de cognoscibilidade e de calculabilidade do Direito Tributário em face das futuras modificações na jurisprudência pátria.
Nesse contexto, autores de uma linha mais tradicional, mais alinhados ao teor literal do art. 110 do CTN, defendem que o conceito de serviço deve guardar relação com o mesmo conceito desse instituto vigente no Direito Privado. Nesse mesmo sentido é que Paulo de Barros Carvalho consigna que, para fins de incidência do ISS, é “forçoso que a atividade realizada pelo prestador apresente-se sob a forma de ‘obrigação de fazer’”, pois “a incidência do ISS pressupõe atuação decorrente do dever de fazer algo até então inexistente, não sendo exigível quando se tratar de obrigação que imponha a mera entrega, permanente ou temporária, de algo que já existe”[4].
Essa definição de serviço como obrigação de fazer também ganhou contornos na jurisprudência brasileira à luz do julgamento referente à hipótese de locação de bens móveis. Essa linha jurisprudencial tida por clássica, que começou a ser formatada no bojo do RE n.º 116.121[5], consolidou-se aos 04 de fevereiro de 2010, quando foi aprovada a Súmula Vinculante n.º 31, com o seguinte teor: “[é] inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”.
Ocorre que, depois da edição da Súmula Vinculante n.º 31, a jurisprudência do STF, aparentemente, passou a sofrer modificações no que diz respeito à definição do conceito de serviço e a admitir modificações conceituais no Direito Tributário a partir dos influxos decorrentes de modificações experimentadas no sistema econômico.
No julgamento do RE n.º 651.703, e. g., em que se tratou da incidência de ISS sobre a atividade de operadoras de planos de saúde, por maioria de votos, a materialidade constitucional do conceito de “serviço”, para fins de incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza (CF, art. 156, III), como o oferecimento de uma utilidade material ou imaterial, sem que, necessariamente, se faça presente uma prestação de fazer, ou uma “prestação de ato pessoal”.
Nos termos do voto do Relator, o STF afirmou, no tocante à fixação do conceito de serviço, que, considerando: (i) a inexistência de univocidade quanto aos significados dos termos empregados na Constituição; (ii) a assunção do pluralismo metodológico em detrimento do formalismo jurídico, devendo o Direito “recorrer também aos aportes de ciências afins para a sua interpretação, como a Ciência das Finanças, Economia e Contabilidade”[6]; e (iii) o reconhecimento das relações entre o Direito e a Economia, não deveria haver uma conexão necessária entre o Direito Tributário e o Direito Privado para fins de fixação de definições atinentes à competência tributária, “não deve ser excluída, a priori, a possibilidade de o Direito Tributário ter conceitos implícitos próprios” nem mesmo de “fazer remissão, de forma tácita, a conceitos diversos daqueles constantes na legislação infraconstitucional, mormente quando se trata de interpretação do texto constitucional[7].
Já no julgamento do RE n.º 634.764, em que o STF examinou a constitucionalidade da “incidência de ISS sobre exploração da atividade de apostas, tais como a venda de bilhetes, pules ou cupons de apostas”[8], reputou-se constitucional a aplicação da referida norma tributária sobre essas atividades, na medida em que essas mesmas atividades implicariam uma prestação de fazer.
Embora nesse julgamento não se tenha verificado uma modificação do conceito de serviço como “prestação de fazer”, nos termos da jurisprudência dita tradicional, o voto condutor traça algumas balizas da compreensão teórica da Corte acerca dos limites da autonomia conceitual do Direito Tributário que apontam que o STF assume a posição autonomista quanto à autonomia conceitual do Direito Tributário.
Isso se dá na medida em que fica consignado que, embora a lei complementar seja incumbida de prover o sistema jurídico com a definição de serviço, não se pode admitir que seja dado à mesma lei complementar definir serviço de maneira arbitrária, sob pena de ofensa ao princípio da supremacia da Constituição e de, por conseguinte, se conferir ao legislador a prerrogativa de ampliar os limites (conceituais) ao poder de tributar estabelecidos nas normas de estrutura do Texto Constitucional que definem as competências tributárias dos respectivos Entes.
Dito de outra forma, aparentemente, o STF chancela a possibilidade de definição autônoma dos conceitos por parte da legislação tributária — não se admitindo que, e. g., “serviço” seja definido como algo diverso de qualquer uma das suas possibilidades semânticas mas tampouco se exigindo que haja qualquer espécie de incorporação prima facie do conceito de serviço presente no Direito Privado.
Por fim, no julgamento das ADI n.º 1.945 e n.º 5.659, nas quais se examinou a constitucionalidade da incidência deICMS sobre licenciamento de software, a Corte decidiu que o tributo incidente sobre a referida operação seria, na verdade, o ISS.
Para se chegar a essa conclusão, pôde-se verificar que, assim como se deu no julgamento do RE n.º 651.703, o STF, ao examinar as ADI n.º 1.945 e n.º 5.659, reputou superada a tradicional dicotomia entre obrigação de dar e obrigação de fazer para fins de determinação da incidência de ISS ou de ICMS sobre determinada operação, em virtude dos aprimoramentos tecnológicos que vieram a influenciar as transações empresariais após a concepção do sistema constitucional tributário.
A partir dessa primeira premissa, a Corte verificou que a Constituição Federal não estabeleceu “que o ICMS mercadoria abrangeria apenas bens corpóreos que são objeto de comércio ou destinados a sê-lo”, tampouco que “toda e qualquer operação com bens incorpóreos (não tangíveis) deva ser considerada prestação de serviço para efeito do ISS”, de tal modo que, a fim de determinar o imposto incidente sobre a referida operação, o critério a ser aplicado seria aquele segundo o qual se “determina a incidência apenas do primeiro se o serviço está definido por lei complementar como tributável por tal imposto, ainda que sua prestação envolva o fornecimento de bens, ressalvadas as exceções previstas na lei” ou se impõe “a incidência apenas do segundo sobre as operações de circulação de mercadorias que envolvam serviços não definidos por lei complementar como tributáveis por imposto municipal”.
Assim, considerando, ainda, que, com base na jurisprudência tradicional da Suprema Corte, “o simples fato de o serviço encontrar-se definido em lei complementar como tributável pelo ISS já atrairia, em tese, a incidência tão somente desse imposto sobre o valor total da operação e afastaria a do ICMS” e que, “para o desenvolvimento de um programa de computador, faz-se necessário um fazer humano”, o contrato de licença de software, por encontrar previsão no item 1.05 da lista anexa à LC n.º 116/2003, deve atrair a incidência do ISS, e não do ICMS.
Em vista do conteúdo dos referidos precedentes, conclui-se que parece haver uma tendência do STF, no que diz respeito quanto à compreensão dos limites da autonomia conceitual do Direito Tributário, a assumir uma postura progressivamente mais distante da subordinação dos conceitos existentes no Direito Privado, ao contrário do que, à primeira vista, se poderia inferir a partir da leitura do art. 110 do CTN.
Com efeito, viu-se que, no âmbito do julgamento do RE n.º 651.703, embora o STF tenha se orientado, aparentemente, pela postura da incorporação prima facie dos conceitos de Direito Privado, há trechos no voto condutor que indicam certo viés autonomista. Já no âmbito do julgamento do RE n.º 634.764, parece ter havido uma assunção da concepção autonomista no que diz respeito aos limites da autonomia conceitual do Direito Tributário, na medida em que não se admitiu que “serviço” fosse definido como algo diverso de qualquer uma das suas possibilidades semânticas mas tampouco se exigiu que houvesse qualquer espécie de incorporação prima facie do conceito de serviço presente no Direito Privado.
Ainda, no julgamento das ADI n.º 1.945 e n.º 5.659, apesar de certos indícios apontarem para a adoção da concepção da incorporação prima facie dos conceitos de Direito Privado, não se exclui a possibilidade de o Tribunal se ter filiado à postura autonomista, na medida em que, embora tenha feito menção a um instituto de Direito Privado (prestação de fazer) para corroborar a conclusão pela incidência de ISS sobre a operação de cessão de software, reputou por superada a tradicional dicotomia entre obrigação de dar e obrigação de fazer e, ao afirmar a modificabilidade dos institutos de Direito Tributário em virtude dos influxos das modificações experimentadas no cenário econômico, nada disse quanto a se essas modificações deveriam ter por ponto de partida o conceito dos institutos de Direito Privado.
E, por fim, vale anotar que tampouco foram apresentados, nos precedentes examinados, critérios claros que pudessem nortear a análise das modificações imprimidas ao conceito de “prestação de serviço de qualquer natureza”. Tanto no julgamento do RE n.º 651.703 quanto no exame das ADI n.º 1.945 e n.º 5.659, admitiu-se a modificação dos conceitos de Direito Tributário em virtude dos influxos das modificações experimentadas nas transações econômicas; não foram apontados, porém, critérios que pudessem medir a gradação desses influxos, de modo a autorizar modificações nos conceitos dos institutos de Direito Tributário.
Essas conclusões parecem apontar para uma certa falta de calculabilidade quanto às possíveis modificações da jurisprudência no que diz respeito à definição dos institutos de Direito Tributário, bem como quanto à forma como essas modificações serão introduzidas. Este estudo preliminar, sem pretensões de dar por encerrado o debate, pretende servir de impulso para a continuação do exame do tema em um espaço amostral composto por uma quantidade mais ampla de precedentes, a fim de tornar possível a inferência de elementos que apontem de uma forma mais precisa em direção a possíveis respostas para os problemas aqui trabalhados.
[1] BARRETO, Paulo Ayres; FONSECA, Fernando Daniel de Moura. Os limites à autonomia conceitual em matéria tributária: uma análise dos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional. In MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Sacha Calmon Navarro (coord.); MENDES, Francisco Schertel Ferreira; CARNEIRO, Rafael Araripe; TEIXEIRA, Tiago Conde (org.). Direito Tributário contemporâneo: 50 anos do Código Tributário Nacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 283.
[2] “Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias” (negritou-se).
[3] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
[4] CARVALHO, op. cit., p. 768 – negritou-se.
[5] RE N.º 116.121/SP, Relator Min. OCTAVIO GALLOTTI, Relator p/ Acórdão Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 11/10/2000, publicado em 25/05/2001
[6] Idem, ibidem, p. 20 de 88.
[7] Idem, ibidem, pp. 17 e 18 de 88 (itálicos do próprio voto).
[8] RE n.º 634.764, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2020, publicado em 01/07/2020.