Suprema contradição: receita bruta, ICMS e a ‘atitude mental jurídica’

Suprema contradição: receita bruta, ICMS e a ‘atitude mental jurídica’

Direito não é texto, não é um conjunto de texto escrito com a finalidade de reger situações do mundo dos fatos. Direito é o significado que se extrai do texto e do contexto, é a norma que emana do que está escrito mediante interpretação ou construção jurídica à luz da realidade concreta.

O texto, portanto, é a fonte do Direito, que é extraído a partir da significação efetivada pelo interprete, seja por interpretação em sentido estrito seja por um processo um pouco mais complexo de construção jurídica[1].

Conhecido, pois, o Direito, ou melhor, a norma jurídica advinda da significação do texto legal, é necessário que os sujeitos envolvidos aceitem e façam aplicar a consequência prevista no ordenamento.

Desde há muito, a significação do texto legal para a formação do Direito e a aplicação precisa da consequência jurídica prevista no ordenamento são pontos de frequente debate.

Na segunda edição de seu clássico “Teoria Geral do Direito Tributário”, de 1972, Alfredo Augusto Becker insistia, com palavras duríssimas, que vivíamos em um “manicômio jurídico tributário”. O estado de confusão, aponta, seria devido, em sua raiz, à precariedade da sistematização dogmática do Direito Tributário, razão pela qual, até então, ainda se confundiam princípios do Direito Tributário com princípios das finanças públicas e de outras ciências, destruindo “precisamente o que há de jurídico no Direito Tributário”[2].

A “terapêutica” para a “demência”, nas ásperas palavras de Becker, seria a adoção da atitude mental jurídica. Segundo o professor gaúcho,

[a] atitude mental jurídica é, exatamente, um reflexo condicionado à incidência da regra jurídica. […]. Isto é, a atitude mental do sujeito ativo e do sujeito passivo da relação jurídica, em se sujeitarem aos efeitos jurídicos resultantes da incidência daquela regra jurídica sôbre [sic] sua hipótese de incidência (“fato gerador”)[3].

Dito de outra forma, essa atitude mental exige das partes – e, por que não dizer, dos intérpretes – uma conformidade do intelecto à realidade jurídica (conteúdo da incidência normativa e da respectiva eficácia jurídica) e um assentimento da vontade a se sujeitarem ao Direito tal qual conhecido pelo intelecto.

Sob a ótica do intérprete, significa dizer: dado que o suporte fático se concretizou e atraiu a incidência de determinada norma, deve-se orientar a vontade (decisão) do intérprete a aplicar precisamente os efeitos que decorrem da incidência dessa mesma norma, segundo os fatos concretos e a norma jurídica incidente, tal como conhecidos pelo intelecto do jurista.

A precária sistematização dogmática apontada por Becker como uma das principais causas para a configuração do assim chamado “manicômio jurídico tributário” foi, em vastíssima medida, superada – graças, em enorme parte, às contribuições de mestres como, dentre outros, Aliomar Baleeiro, Geraldo Ataliba, Gilberto de Ulhôa Canto e, por que não o mencionar, o próprio Becker – e as limitações que se poderiam apontar a respeito do conhecimento da realidade jurídico-tributária devem-se hoje, fundamentalmente, à multidão de leis que vigoram no ordenamento tributário, mas não a limites intrínsecos à sistematização dogmática, já suficientemente desenvolvida.

Se, porém, por um lado, é certo que já deixamos o manicômio (que poderíamos chamar de confusão significativa do Direito Tributário), tal como descrito por Becker, e que podemos comemorar o fato de termos uma verdadeira ciência do Direito Tributário, por outro, não é menos preciso afirmar que ainda hoje persistem limitações quanto à adoção rigorosa da atitude mental jurídica – mesmo que por razões diversas –, que não deixam de causar embaraços hermenêuticos e, até mesmo, ontológicos.

Uma das mais recentes e pujantes evidências dessa resistência em se adotar a atitude mental jurídica foi o recente julgamento do RE nº 1.187.264, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou – eis a tese de repercussão geral firmada sob o Tema nº 1.048 – que “[é] constitucional a inclusão do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB)”.

A evidência da não adoção, nesse caso, da atitude mental jurídica reside no fato de que o acórdão deixou, no caso específico, de significar – eis a realidade jurídica ignorada, embora reconhecida em recentíssimos julgados da Corte – que o ICMS consiste em receita de terceiro, razão pela qual não deve compor a base de cálculo de tributos que a tenham por “receita bruta” do contribuinte.

Essa realidade foi reconhecida, inicialmente, no julgamento do RE nº 240.785, em 2014. Nessa oportunidade, a Suprema Corte concluiu ser indevida a inclusão do ICMS na base de cálculo da contribuição ao Programa de Integração Social e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – PIS/Cofins porque os valores atinentes aos custos de ICMS não compõem o conceito de faturamento – o qual compreende receitas de titularidade do contribuinte, apenas –, pois “o arcabouço jurídico-constitucional inviabiliza a tomada de valor alusivo a certo tributo como base de incidência de outro” (RE nº 240.785, relator min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 08/10/2014, DJe 15/12/2014).

Nesse mesmo sentido, agora em sede de repercussão geral, em 2017, a Corte, nos autos do RE nº 574.706, reafirmou o entendimento de que o ICMS “não constitui receita do contribuinte”, uma vez que “ainda que não no mesmo momento, o valor do ICMS tem como destinatário fiscal a Fazenda Pública, para a qual será transferido” e, portanto, “não guarda relação com a definição constitucional de faturamento para fins de apuração da base de cálculo das contribuições” (RE nº 574.706, rel. min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2017, DJe 29/09/2017). Firmou-se a tese (Tema 69) de que “[o] ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”.

Foi aí, então, que se incorreu em suprema contradição de conceitos: a receita bruta passou a ser e a não ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto[4], receita de titularidade do contribuinte (RE nº 1.187.264) e receita de titularidade de terceiro (RE nº 240.785 e RE nº 574.706).

Considerando o significado já explicitado pelo próprio STF, em 2014 e em 2017, de que o ICMS não é receita de titularidade do contribuinte, mas de terceiro, o RE nº 1.187.264 haveria que ter sido julgado com respeito ao seguinte silogismo: (i) sendo a receita bruta composta por ingressos de titularidade do contribuinte; (ii) sendo o ICMS ingresso de titularidade de terceiro; (iii) logo o ICMS deve ser excluído da base de cálculo da CPRB, uma vez que a base de cálculo desse tributo corresponde à receita bruta.

Deixou-se de lado o significado anteriormente explicitado e afastou-se da essencial – para a segurança necessária do ordenamento – atitude mental jurídica, a fim de se alcançar um resultado diverso daquele que se teria – e haveria que se ter – com a interpretação e correta aplicação do Direito.

No voto condutor do acórdão lavrado do julgamento do RE nº 1.187.264, expôs-se a razão (antijurídica) de que “permitir o abatimento do ICMS do cálculo da CPRB ampliaria demasiadamente o benefício fiscal [que outorgou à Recorrente a faculdade de optar pela desoneração da folha de pagamentos e pelo regime da CPRB]”.

Levou-se em consideração o argumento fazendário de que o provimento do recurso poderia impactar em R$ 9 bilhões os cofres públicos, estimativa destacada pelo ministro da Fazenda em reunião com a Presidência do STF, conforme noticiado neste mesmo Portal[5].

O raciocínio lógico-jurídico, uma vez mais, foi lamentavelmente invertido e, para não se chegar a um resultado que a Corte adotou como indesejado – a ampliação do benefício fiscal e o impacto na contas da União –, ressignificou-se, para o caso, o já estabelecido conceito de que “ICMS é receita de titularidade de terceiro”.

Das causas decorrem consequências, e não o oposto; dessa forma, é a definição de receita bruta quem deve dizer se o ICMS lhe constitui, e não a consequência da decisão (impacto arrecadatório) é que revela o conceito de receita bruta, sob pena de, a cada consequência, adotar-se conceitos casuísticos para os tributos, até que não se saiba mais o conceito de qualquer tributo.

E assim, não sobrará segurança jurídica aos contribuintes, pois, nos dizeres de Humberto Ávila, já não restará qualquer cognoscibilidade intelectual a respeito do Direito, por ser indeterminável o seu conteúdo – dada, no caso, tão flagrante incoerência, ou, mais propriamente, tão suprema contradição[6].

A atitude mental jurídico-tributária, com efeito, exige que se afaste qualquer espécie de consequencialismo como critério decisório. Seu resgate é assunto da mais alta urgência (Fonte: JOTA).



[1] GUASTINI, Riccardo. El realismo jurídico redefinido. In: VAQUERO, Álvaro Núñez (Ed.). Modelos de ciencia jurídica. Palestra: Lima, 2013, p. 18.

[2] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 117.

[3] Idem, ibidem, p. 39.

[4] Conforme leciona Ives Gandra da Silva Martins Filho, o princípio metafísico da não contradição, em seu matiz final conferido por Aristóteles — até hoje não superado —, é formulado exatamente nesses termos: “[é] impossível ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto” (In Manual esquemático de filosofia. 5ª ed. São Paulo: LTr, 2010, p. 21.

[5] “STF define que o ICMS entra na base de cálculo da CPRB”. Disponível em <https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/stf-define-que-o-icms-entra-na-base-de-calculo-da-cprb-24022021>. Acesso em 28 de março de 2021.

[6] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016, pp. 333 e 334.

ADEMAR CYPRIANO BARBOSA – Sócio-administrador do Cypriano Advogados. Bacharel e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. Membro efetivo da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil – ABPC.

ARTHUR DE OLIVEIRA CALAÇA COSTA – Sócio do Cypriano Advogados. Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP.

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